sábado, 6 de outubro de 2018

DEMOCRACIA E ELEIÇÕES – Parte 3



A social-democracia

 

por Riviano e José Barata
as opiniões deste texto são de responsabilidade dos autores
Leia as partes 01 e 02
 

O ditado popular “lobo em pele de cordeiro” é mundialmente conhecido e mundialmente negligenciado. Provavelmente, quando pensamos nesse ditado, nos vem a mente um lobo toscamente coberto por uma couraça de lã. Obviamente disfarçado. Esta cena, certamente, nos faria até rir da burrice dos cordeiros, ingenuamente incapazes de enxergar o óbvio. Porém, este raciocínio nos faz subestimar a capacidade dos lobos de encontrarem bons estilistas. Seria possível produzir uma pele de cordeiro quase tão perfeita que até um especialista teria dificuldade em distinguir o falso do verdadeiro? Ora, se a sobrevivência dos lobos dependesse de uma boa costura, podem ter certeza que teriam as melhores grifes.

Certamente existem diversas coisas no mundo que são óbvias. A estupidez de Bolsonaro seguramente é uma delas. A razão dele conseguir tantos apoiadores, por outro lado, não é. Precisamos desenvolver algum senso de questionamento das coisas que parecem óbvias. Vivemos em uma sociedade baseada na exploração, na qual poucos indivíduos vivem cercados por privilégios inimagináveis para uma maioria que possui poucos privilégios ou privilégio algum. Decerto, os mecanismos que sustentam estes privilégios não podem ser óbvios, se assim fossem, uma sociedade tão desigual não seria sustentável. As pessoas não são vítimas de exploração por serem burras como nossos cordeiros, mas porque, dentre outras coisas, a estrutura social possui mecanismos refinados de mistificação. Estes mecanismos são tão profundos que até os indivíduos mais inteligentes se deixam levar por falsos caminhos. Inclusive, os indivíduos mais privilegiados são aqueles mais profundamente alienados das contradições sociais, pois são os maiores ameaçados por uma possível quebra desses privilégios. É decisivo que neguem, a todo custo, a necessidade mais geral da humanidade que as coisas mudem radicalmente.

A burguesia fará de tudo para não perder o menor dos privilégios. Porém, não podem fazer isso sozinhos, pois a classe trabalhadora está sempre desconfiada daqueles que possuem privilégios. A melhor forma de você fazer alguém tomar uma decisão que lhe favoreça é convencer essa pessoa que ela tomou a decisão por conta própria. A melhor forma de convencer os eleitores a votar em um candidato é convencê-los de que este político é um dos seus ou representa seus interesses. Isso, em grande parte, explica o fenômeno Lula. Um candidato simplesmente tão imbatível que até da cadeia alimenta o imaginário dos brasileiros. Uma personalidade tão impressionante que nem os maiores indícios de seu envolvimento com escândalos de corrupção pôde convencer seus seguidores mais fiéis à abandoná-lo.

Lula e o PT fazem parte de um campo político indispensável para o sistema capitalista, a social-democracia. Os social-democratas nasceram da fração reformista da classe trabalhadora e hoje se transformaram em uma espécie de elite burocrática, que faz o meio de campo entre a burguesia e o proletariado. As grandes lutas políticas entre burgueses e proletários se consolidaram na Europa, berço do capitalismo, logo após a derrota definitiva do Antigo Regime e da destruição das relações feudais. Isso se deu por volta de 1848. Nesta época ainda havia um pouco da chama revolucionária acesa em 1789 pela Revolução Francesa. Os trabalhadores que combateram ao lado da burguesia contra a nobreza não colheram os benefícios da batalha. Permaneceram em luta enquanto a burguesia se tornava cada vez mais conservadora. 

No campo proletário haviam duas grandes tendências. Uma delas era a tendência revolucionária. Acreditavam na necessidade de uma nova revolução e no rompimento radical com a burguesia. A outra tendência era a reformista. Acreditavam no aperfeiçoamento da sociedade recém criada através de reformas políticas, logo apoiavam o desenvolvimento do capitalismo em aliança com a burguesia. Sua principal bandeira política é a luta por direitos. Tais direitos, por sua vez, são conquistados por dentro do Estado, ou seja, em um consenso com as frações hegemônicas da burguesia. Foi desta tendência reformista do proletariado que surgiu a social-democracia. Tornou-se uma força política importantíssima tanto para convencer a classe trabalhadora a desistir de qualquer projeto revolucionário, quanto para convencer a burguesia a conceder direitos aos trabalhadores com o objetivo de evitar qualquer revolução. Percebendo a importância da social-democracia, a burguesia de vários países aceitou-a enquanto sua porta-voz frente à classe trabalhadora[1].

A principal base de apoio social-democrata é o sindicalismo. Diferente do passado, hoje os sindicatos são máquinas burocráticas, responsáveis por controlar as lutas da classe trabalhadora. Eles direcionam as decisões políticas e, acima de tudo, mantêm as assembléias gerais na palma da mão. São verdadeiros políticos profissionais. Cristalizaram-se enquanto uma casta que domina a cena política. São os primeiros a sabotar as greves que tentam transferir o controle do movimento da direção sindical para as assembléias gerais. São aqueles que sentam nas mesas de negociação para fechar os acordos que sejam convenientes ao patronato. Por fim, são responsáveis por impedir que a classe trabalhadora aprenda na prática como conduzir suas lutas de maneira independente, sem a tutela de seus mestres sindicalistas. 

Os vários anos de hegemonia petista nas lutas sindicais, e mais tarde no governo federal, produziram toda uma geração de trabalhadoras e trabalhadores que são incapazes de conduzir suas próprias lutas. Muitas vezes não sabem sequer o básico da luta política como, por exemplo, conduzir uma assembléia sem a ajuda dos burocratas sindicais. Este processo de educação apenas pode se concretizar no cotidiano da luta política ao longo dos anos. Porém, a classe trabalhadora sequer sabe que possui esse poder. Está paralisada pela ilusão de que precisa da supervisão de representantes políticos.

Infelizmente, assim como para a burguesia, não interessa aos sindicalistas superar a relação de exploração que existe na base econômica da sociedade, pois eles também colhem seus privilégios. A carreira de sindicalista pode ser o caminho mais rápido para um trabalhador carreirista alcançar a ascensão social. Basta observar como sindicalistas utilizaram sua influência como trampolim político para se tornarem deputados, governadores e até Presidente da República. Tais cargos os tornam pessoas ricas, deixando de pertencer a sua classe social de origem. São capachos vendidos, traidores da classe trabalhadora.

Por fim, a social-democracia é o principal obstáculo para que a classe trabalhadora desenvolva uma consciência de classe sólida e se eduque para reagir aos avanços conservadores e a uma possível guinada em direção ao fascismo, diante da crise que enfrentamos[2]. No Brasil, essa social-democracia pode ser identificada em um amplo espectro que vai desde a direita com o PSDB, passando pelo PDT mais ao centro, pelo PT na centro-esquerda e por um PSOL à esquerda. Nesta fronteira mais à esquerda, seria possível colocar alguns partidos que misturam elementos social-democratas com o trotskismo (PSTU) ou com o stalinismo (PCB e PCdoB), por exemplo. Por mais diferentes que sejam suas concepções no interior da social-democracia, são todos partidos reformistas, ou seja, são partidos da ordem. Participam das eleições para tentar se promover. Ainda que tragam em seus discursos demagógicos palavras como “revolução” e “socialismo”, nas entrelinhas, todavia, é possível notar o desejo destes grupos por uma “revolução socialista” no qual a classe trabalhadora seja uma mera seguidora cega da direção do partido de vanguarda. 

Não querem uma classe trabalhadora que pense e lute por conta própria, mas que siga com disciplina a orientação partidária. O mais curioso é que quando os trabalhadores não obedecem, são acusados pelos social-democratas de serem apáticos, como, por exemplo, quando a população não respondeu ao chamado para “lutar” contra o impeachment de Dilma. O PT não conseguia explicar como os brasileiros estavam assistindo, quase sem reação, ao pacote de reformas anunciadas pelo governo Temer. Lamentam-se de um problema do qual eles são responsáveis. A classe trabalhadora desaprendeu a lutar por contra própria. Ao mesmo tempo, está desiludida com a direção petista. A paralisia é a reação mais natural de quem não sabe o que fazer.

Apenas a luta revolucionária da classe trabalhadora, organizada de maneira autônoma frente aos partidos e sindicatos, pode conter o avanço conservador. Quanto mais adiam essa luta, mais forte se tornam as forças conservadoras. O caminho das eleições certamente não é a solução. Honestamente, o cenário eleitoral nos impõe a escolha entre os cínicos e os escrotos. Difícil saber o que é pior. De qualquer forma, quem quer que assuma o governo da república muito provavelmente enfrentará um problema grave, caso a crise econômica se aprofunde ainda mais. No caso de uma vitória de Haddad ou Ciro, a social-democracia irá se desmoralizar ainda mais, fazendo com que Bolsonaro possivelmente retorne ainda mais forte nas próximas eleições.

Se toda essa argumentação não foi suficiente para convencê-lo que existe uma relação entre o adestramento da classe trabalhadora e o avanço do fascismo, então precisamos olhar de perto um exemplo histórico clássico, o caso da Alemanha. Este país foi dominado pelos nazistas 15 anos depois do proletariado alemão se levantar em uma revolução entre 1918 e 1919. Como um proletariado revolucionário caiu nas mãos do fascismo em tão pouco tempo? No meio do caminho havia a social-democracia alemã. Vamos conhecer essa história na quarta parte desta série de artigos.



[1] Arquivo Marxista na Internet: Marx – O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (clique aqui); Instituto Lukács: Bruno Gonçalves da Paixão – A política em Marx (clique aqui)
[2]Velha Toupeira: Grandizo Muñis - Os sindicatos contra a revolução social (clique aqui).