A social-democracia alemã e a
ascensão nazista
por Riviano e José Barata
as opiniões deste texto são de responsabilidade dos
autores
A experiência fascista mais clássica é a
experiência do nazismo alemão. Poucos são aqueles que não reconhecem a suástica
ou o típico bigodinho de Adolf Hitler. É necessário olhar com cuidado para essa
história e compreender como a Alemanha do holocausto e dos campos de
concentração foi possível. O mais impressionante disso tudo, como afirmamos na
terceira parte desta série de artigos, é que poucos anos antes a classe
trabalhadora alemã estava no extremo oposto do fascismo. Promoveram uma
tentativa de revolução proletária radical e emancipadora. Construíram seus
órgãos de poder (os conselhos) e ensaiaram assumir a direção da sociedade com
suas próprias mãos, sobretudo na região da Baviera. Esta tentativa, porém, foi
derrotada pelos antigos aliados da classe trabalhadora, os social-democratas.
Para compreender esse processo precisamos regressar
para 1914. A Europa estava às vésperas da Primeira Guerra Mundial. As razões do
conflito nada tinham a ver com os interesses da classe trabalhadora europeia.
Tratava-se basicamente de um conflito entre antigos e novos impérios coloniais.
Juntas, Inglaterra e França dominavam mais da metade do continente africano. Os
ingleses ainda possuíam o domínio da Índia e estavam à beira de agarrar o
grande império chinês. Alemanha e Itália, Estados nacionais recém-nascidos,
despontavam enquanto grandes potências. Porém, havia um grande problema. O
mundo já era dominado por grandes impérios coloniais, com destaque para
Inglaterra e França, que três séculos antes já haviam se lançado na expansão
marítima. A Alemanha industrializava-se rapidamente e precisava de fontes de
matérias primas para abastecer sua produção e de mercados para escoar suas
mercadorias. Assumiu, então, uma posição agressiva. A burguesia alemã precisava
desesperadamente de colônias[1].
Nessa época, o Partido Social-Democrata da Alemanha
(SPD – Sozialdemokratische Partei Deutschlands) era uma força poderosa e
uma referência para a social-democracia europeia, que o considerava líder do
movimento internacional dos trabalhadores e da II Internacional. Desde 1912,
havia se convertido no partido de maior força no parlamento alemão. Quando a
guerra foi declarada em agosto de 1914, o partido ficou dividido quanto ao
apoio do conflito. A ala parlamentar do partido, em sua maioria, apoiava a
guerra, considerando a entrada da Rússia czarista, ao lado da Inglaterra e da
França. Enxergavam na Rússia uma força atrasada, bárbara e opressora, pois
ainda vivia sob um regime absolutista. A ala esquerda do partido, por sua vez,
tinha clareza de que a guerra era um conflito imperialista. Apoiar a guerra,
além de ferir as resoluções da II Internacional, significava enviar os
trabalhadores para morrer na frente de batalha em nome dos interesses dos
capitalistas[2].
Em 4 de agosto, todo o grupo parlamentar do SPD
aprovou os créditos de guerra solicitados pelo imperador Guilherme II.
Além disso, os sindicatos decidiram abrir mão do direito de greve enquanto
durasse o conflito. Com o apoio da social-democracia foi possível a mobilização
total do exército alemão no esforço de guerra. Essa decisão provocou um racha
dentro do partido. A ala esquerda, contrária a guerra, foi expulsa do SPD. Dentre
estes estava Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, que ajudaram a fundar a Liga
Spartakista (Spartakusbund) em janeiro de 1916. Esse embate também
provocou a cisão da II Internacional. O grupo dissidente, contrário a guerra,
em seguida participou da fundação da III Internacional.
A Primeira Guerra Mundial, como todos sabem, durou
mais de 4 anos. Os resultados foram desastrosos. Milhares de trabalhares
morreram nos campos de batalha, os demais enlouqueceram nas trincheiras. A
população sofreu com a economia devastada pela guerra e desejava a paz cada vez
mais. Nem quando a Rússia deixou o conflito em 1917, após a revolução de
outubro, o governo alemão e a social-democracia retrocederam. Essa postura,
todavia, deixava claro os reais interesses imperialistas por detrás da guerra.
Nesse mesmo ano, inúmeras greves de solidariedade à revolução russa se
espalhavam pela Alemanha. Trabalhadores e soldados manifestavam sua
insatisfação e seu interesse em pôr fim à guerra.
Em 1918, vários conselhos operários foram criados
na Alemanha[3]. Os trabalhadores estavam se organizando de maneira autônoma. Em
28 outubro de 1918, a marinha alemã planejava enviar sua frota para uma última
batalha contra a marinha britânica no Canal da Mancha. Era praticamente uma
missão suicida. Os marinheiros, baseados em Wilhelmshaven, recusam-se a seguir
esta ordem. No dia seguinte o mesmo ocorre em Kiel. É o inícioda revolução. Em
9 de novembro, mais de cem mil operários saíram das fábricas em Berlim, em
direção ao centro da cidade. Ganharam o apoio dos soldados pelos quartéis por
onde passavam. A revolução tomou conta do país, resultando no fim da
guerra.
Os social-democratas reformistas se anteciparam e
proclamaram a república[4]. O conselho de operários e soldados de Berlim nomeou
um governo socialista provisório sob a direção de Friedrich Ebert, um dos
líderes reformistas da social-democracia. Ao assumir o governo, a
social-democracia buscou manter a ordem a todo custo. Levantou a bandeira de
uma Assembleia Nacional Constituinte sob a sua direção. Começou, então, a
enxergar os conselhos operários como baderna e desordem. Passou a fazer de tudo
para enquadrá-los. A situação se radicalizou em Berlim quando, em dezembro, o
governo social-democrata reprimiu duramente uma revolta de marinheiros. Esse
episódio motivou parte do SPD à abandonar o governo que, por sua vez, se tornou
mais conservador. No mesmo mês, a Liga Spartakista liderou a fundação do
Partido Comunista da Alemanha (KPD – Kommunistische Partei Deutschlands).
Em janeiro de 1919, Gustav Noske, comissário de defesa do governo
social-democrata, marchou sobre Berlim liderando um grupo paramilitar
extremamente violento que ficou conhecido como “corpos francos” (Freikorps[5]).
Noske se uniu aos oficiais conservadores e monarquistas para realizar uma
verdadeira caçada contra os comunistas. Entre janeiro e março, Rosa Luxemburgo,
Karl Liebknecht, Leo Jogiches e outros membros do KPD foram assassinados sob as
ordens de seus antigos companheiros de partido[6].
Uma greve geral é brutalmente reprimida em março.
Muitos trabalhadores perdem a vida. O acirramento dos conflitos com o governo
provisório social-democrata, todavia, empurra os trabalhadores para a
radicalização. Enfrentamentos armados se multiplicam, assim como a ocupação de
prédios públicos, fábricas e jornais. Em 7 de abril, no sudeste do país, é
proclamada a República dos Conselhos da Baviera, cujo centro foi a cidade de
Munique. O principal nome deste movimento foi Kurt Eisner. O governo era,
majoritariamente, organizado pelos trabalhadores revolucionários, que estavam
organizados em conselhos. Esses queriam tomar para si a tarefa de destruir o
antigo Império Alemão, pois já não confiavam mais no governo social-democrata
que, além de ter se tornado agente da contrarrevolução, aliou-se às antigas
forças da monarquia[7].
A repressão, todavia, não tardou a chegar. Com o
apoio de Gustav Noske, à frente dos Freikorps, o ataque começou já em 23
de abril. Sete dias depois a cidade de Munique foi cercada. Centenas de
revolucionários foram executados sumariamente. O massacre da Baviera marca o
fim da revolução alemã. A classe trabalhadora foi desarmada política e
militarmente. Com o apoio das forças conservadoras, a nova ordem estabelecida
se legitima com a eleição da Assembleia Nacional Constituinte em janeiro de
1919, majoritariamente dominada pelo SPD. Em agosto é promulgada a
constituição, dando início a chamada República de Weimar[8]. Sob o governo do
social-democrata Friedrich Ebert, iniciou-se uma política imposta a ferro e
fogo.
Aqueles que lideraram o massacre de milhares de
trabalhadores alemães não foram os fascistas (inexistentes na época) ou as
forças reacionárias da monarquia, mas os próprios “socialistas” da
social-democracia. O papel central do SPD na contrarrevolução, por sua vez, fez
com que a nova república alemã se erguesse sob bases muito frágeis. A repressão
violenta a todos os movimentos subsequentes, como uma greve geral no Ruhr em
1920, esmagada pelo exército, fez com que a classe operária cada vez mais
deixasse de apoiar a social-democracia. Para completar, as duras medidas
implementadas pelo Tratado de Versalhes, impostas com a derrota da Alemanha na
Primeira Guerra, levaram à ruína da economia do país. Isso provocou um imenso
rancor contra os países vitoriosos, exacerbando sentimentos nacionalistas.
Quando chegou a grande depressão, em 1929, a catástrofe já estava anunciada. A
derrota do movimento operário pela repressão liderada pelo SPD, o rancor
nacionalista e a crise econômica transformaram a Alemanha em um barril de
pólvora. Foi nesse terreno confuso que se assentaram as bases da onda
conservadora que impulsionou o Partido Nazista nas eleições de 1930, quando se
tornou a segunda maior bancada no parlamento.
Apesar de ter ficado em segundo lugar nas eleições
presidenciais de 1932, Adolf Hitler se tornou uma figura de peso. Com o apoio
de grandes setores industriais, conseguiu convencer o parlamento a elegê-lo ao
cargo de chanceler (chefe de governo, similar ao primeiro ministro). A partir
daí, Hitler soube agir dentro da legalidade para ampliar sua influência e
eliminar sua oposição. Perseguiu desde a social-democracia parlamentar até a
militância comunista. Em 1934, após a morte do presidente Hindenburg, funde a
presidência com a chancelaria tornando-se chefe de governo e de Estado. A fusão
foi aprovada por 90% da população por meio de um plebiscito, em agosto do mesmo
ano[9].
Naquele cenário caótico, Hitler representava a
mudança e a restauração da ordem. Diante da impotência de suas próprias forças,
dilaceradas pela social-democracia, a classe trabalhadora não foi capaz de
resistir ao avanço fascista tal como resistiu à guerra em 1918. Por outro lado,
a população alemã ansiava por uma salvação. Surge, então, um personagem que
encarnou toda a insatisfação com o Tratado de Versalhes, responsabilizando os
comunistas e o governo social-democrata pela humilhação da Alemanha ao se
submeter a tal acordo[10]. A população alemã não apoiou Hitler e os nazistas
simplesmente por serem fascistas. Estava farta da social-democracia e
desesperada pela ruína econômica, acentuada pela crise de 1929.
Existem muitas diferenças entre a Alemanha dos anos
de 1930 e o Brasil nos dias de hoje. As semelhanças, da mesma forma, também são
notáveis. Afirmamos na primeira parte desta série que Bolsonaro não é
propriamente um fascista, muito embora existam muitas semelhanças, proximidades
e alianças entre o populismo de direita e o fascismo. O que gostaríamos de
destacar agora é que, tanto em um caso como no outro, estamos diante de uma
classe trabalhadora que foi enfraquecida pela social-democracia.
Com o objetivo de conquistar o governo, o PT
conduziu sua militância para o cabresto da estratégia eleitoral. Utilizou os
sindicatos para manter o movimento operário sob sua direção. Sufocou a
autonomia do movimento tornando-o cada vez mais dócil e burocrático. Sob o
governo do PT, os sindicatos se tornaram forças cada vez mais poderosas,
verdadeiras máquinas a serviço do Estado. A fusão entre sindicatos e Estado é a
grande marca do sindicalismo nos dias de hoje[11]. De “escolas do socialismo”,
como dizia Lênin, os sindicatos transformaram-se definitivamente em “escolas da
democracia burguesa”. Eis a função essencial da social-democracia, transformar
a classe trabalhadora de lutadores em uma massa de eleitores dóceis. Uma classe
trabalhadora fragilizada não é capaz de reagir a qualquer avanço conservador
nos momentos de crise. Entregam-se abertamente ao conservadorismo diante do
desespero e da impotência. Desde que não vislumbre qualquer outra saída para
além do cenário eleitoral, a população tende a oscilar para os partidos de
oposição nos momentos de crise do governo atual. Há dezesseis anos atrás, o PT
representou um governo de renovação através de um candidato que era a cara do
sofrido trabalhador brasileiro. A expectativa de renovação, porém, foi
profundamente frustrada. Agora é o Bolsonaro que representa essa “renovação”,
assim como Hitler representou na Alemanha de 1932. Infelizmente, com seu
discurso intransigente, o capitão reformado representa a restauração da ordem
perdida diante do caos econômico e político em que o Brasil se encontra. Diante
disso, podemos dizer que o PT, ao adestrar a classe trabalhadora, preparou o
terreno para o fortalecimento do conservadorismo.
Tal como ocorreu na Alemanha de Hitler, o grande
eleitorado de Jair Bolsonaro não o apoia simplesmente por concordar com todas
as barbaridades que ele diz. Evidentemente, muitos pensam como ele, mas não
parece tratar-se da grande maioria. Basta pensar que Lula estava liderando as
pesquisas enquanto era um possível candidato. O fato de Bolsonaro ter conquistado
46% dos votos válidos no primeiro turno significa, necessariamente, que ele
conquistou muitos votos que seriam de Lula. Sem seu líder carismático, o PT foi
incapaz de se apresentar enquanto símbolo da mudança, pois está envolvido com
os velhos escândalos de corrupção até o pescoço. Sem Lula para “acabar com a pobreza”, Bolsonaro desponta como aquele que vai “acabar com
os bandidos”. Por que essa ideia conquista tantos apoiadores? De onde vem esse
apoio? Quais contradições sociais fazem ecoar, de maneira tão ensurdecedora, as
palavras do populista? Daremos um pouco mais de atenção a este problema na
quinta parte dessa série de artigos.
[1]Library
Genesis – Hobsbawn: A era dos impérios (clique aqui); Winkipédia – Neocolonialismo
(clique aqui)
[2]Winkipédia
– Revolução Alemã de 1918-1919 (clique aqui)
[3]Isabel
Loureiro: Os conselhos na revolução alemã de 1918/19 (clique aqui).
[4]DW
- República Alemã teve proclamação dupla em 1918 (clique aqui)
[5]Wikipédia
– Freikorps (clique aqui).
[6]CCI
– Há noventa anos, a revolução alemã (clique aqui).
[7]Isabel
Loureiro: A revolução alemã [1918-1923] (clique aqui)
[8]DW –
A República de Weimar (clique aqui)
[9]Wikipédia
– Adolf Hitler (clique aqui)
[10]Adolf
Hitler: Minha luta (clique aqui)
[11]Biblioteca
Marxista na Internet – Anton Pannekoek: O sindicalismo (clique aqui)