quinta-feira, 11 de outubro de 2018

DEMOCRACIA E ELEIÇÕES – Parte 4



A social-democracia alemã e a ascensão nazista


por Riviano e José Barata
as opiniões deste texto são de responsabilidade dos autores
Leia as partes 01, 02 e 03

A experiência fascista mais clássica é a experiência do nazismo alemão. Poucos são aqueles que não reconhecem a suástica ou o típico bigodinho de Adolf Hitler. É necessário olhar com cuidado para essa história e compreender como a Alemanha do holocausto e dos campos de concentração foi possível. O mais impressionante disso tudo, como afirmamos na terceira parte desta série de artigos, é que poucos anos antes a classe trabalhadora alemã estava no extremo oposto do fascismo. Promoveram uma tentativa de revolução proletária radical e emancipadora. Construíram seus órgãos de poder (os conselhos) e ensaiaram assumir a direção da sociedade com suas próprias mãos, sobretudo na região da Baviera. Esta tentativa, porém, foi derrotada pelos antigos aliados da classe trabalhadora, os social-democratas.

Para compreender esse processo precisamos regressar para 1914. A Europa estava às vésperas da Primeira Guerra Mundial. As razões do conflito nada tinham a ver com os interesses da classe trabalhadora europeia. Tratava-se basicamente de um conflito entre antigos e novos impérios coloniais. Juntas, Inglaterra e França dominavam mais da metade do continente africano. Os ingleses ainda possuíam o domínio da Índia e estavam à beira de agarrar o grande império chinês. Alemanha e Itália, Estados nacionais recém-nascidos, despontavam enquanto grandes potências. Porém, havia um grande problema. O mundo já era dominado por grandes impérios coloniais, com destaque para Inglaterra e França, que três séculos antes já haviam se lançado na expansão marítima. A Alemanha industrializava-se rapidamente e precisava de fontes de matérias primas para abastecer sua produção e de mercados para escoar suas mercadorias. Assumiu, então, uma posição agressiva. A burguesia alemã precisava desesperadamente de colônias[1].

Nessa época, o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD – Sozialdemokratische Partei Deutschlands) era uma força poderosa e uma referência para a social-democracia europeia, que o considerava líder do movimento internacional dos trabalhadores e da II Internacional. Desde 1912, havia se convertido no partido de maior força no parlamento alemão. Quando a guerra foi declarada em agosto de 1914, o partido ficou dividido quanto ao apoio do conflito. A ala parlamentar do partido, em sua maioria, apoiava a guerra, considerando a entrada da Rússia czarista, ao lado da Inglaterra e da França. Enxergavam na Rússia uma força atrasada, bárbara e opressora, pois ainda vivia sob um regime absolutista. A ala esquerda do partido, por sua vez, tinha clareza de que a guerra era um conflito imperialista. Apoiar a guerra, além de ferir as resoluções da II Internacional, significava enviar os trabalhadores para morrer na frente de batalha em nome dos interesses dos capitalistas[2]. 

Em 4 de agosto, todo o grupo parlamentar do SPD aprovou os créditos de guerra solicitados pelo imperador Guilherme II. Além disso, os sindicatos decidiram abrir mão do direito de greve enquanto durasse o conflito. Com o apoio da social-democracia foi possível a mobilização total do exército alemão no esforço de guerra. Essa decisão provocou um racha dentro do partido. A ala esquerda, contrária a guerra, foi expulsa do SPD. Dentre estes estava Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, que ajudaram a fundar a Liga Spartakista (Spartakusbund) em janeiro de 1916. Esse embate também provocou a cisão da II Internacional. O grupo dissidente, contrário a guerra, em seguida participou da fundação da III Internacional.

A Primeira Guerra Mundial, como todos sabem, durou mais de 4 anos. Os resultados foram desastrosos. Milhares de trabalhares morreram nos campos de batalha, os demais enlouqueceram nas trincheiras. A população sofreu com a economia devastada pela guerra e desejava a paz cada vez mais. Nem quando a Rússia deixou o conflito em 1917, após a revolução de outubro, o governo alemão e a social-democracia retrocederam. Essa postura, todavia, deixava claro os reais interesses imperialistas por detrás da guerra. Nesse mesmo ano, inúmeras greves de solidariedade à revolução russa se espalhavam pela Alemanha. Trabalhadores e soldados manifestavam sua insatisfação e seu interesse em pôr fim à guerra.

Em 1918, vários conselhos operários foram criados na Alemanha[3]. Os trabalhadores estavam se organizando de maneira autônoma. Em 28 outubro de 1918, a marinha alemã planejava enviar sua frota para uma última batalha contra a marinha britânica no Canal da Mancha. Era praticamente uma missão suicida. Os marinheiros, baseados em Wilhelmshaven, recusam-se a seguir esta ordem. No dia seguinte o mesmo ocorre em Kiel. É o inícioda revolução. Em 9 de novembro, mais de cem mil operários saíram das fábricas em Berlim, em direção ao centro da cidade. Ganharam o apoio dos soldados pelos quartéis por onde passavam. A revolução tomou conta do país, resultando no fim da guerra. 

Os social-democratas reformistas se anteciparam e proclamaram a república[4]. O conselho de operários e soldados de Berlim nomeou um governo socialista provisório sob a direção de Friedrich Ebert, um dos líderes reformistas da social-democracia. Ao assumir o governo, a social-democracia buscou manter a ordem a todo custo. Levantou a bandeira de uma Assembleia Nacional Constituinte sob a sua direção. Começou, então, a enxergar os conselhos operários como baderna e desordem. Passou a fazer de tudo para enquadrá-los. A situação se radicalizou em Berlim quando, em dezembro, o governo social-democrata reprimiu duramente uma revolta de marinheiros. Esse episódio motivou parte do SPD à abandonar o governo que, por sua vez, se tornou mais conservador. No mesmo mês, a Liga Spartakista liderou a fundação do Partido Comunista da Alemanha (KPD – Kommunistische Partei Deutschlands). Em janeiro de 1919, Gustav Noske, comissário de defesa do governo social-democrata, marchou sobre Berlim liderando um grupo paramilitar extremamente violento que ficou conhecido como “corpos francos” (Freikorps[5]). Noske se uniu aos oficiais conservadores e monarquistas para realizar uma verdadeira caçada contra os comunistas. Entre janeiro e março, Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Leo Jogiches e outros membros do KPD foram assassinados sob as ordens de seus antigos companheiros de partido[6].

Uma greve geral é brutalmente reprimida em março. Muitos trabalhadores perdem a vida. O acirramento dos conflitos com o governo provisório social-democrata, todavia, empurra os trabalhadores para a radicalização. Enfrentamentos armados se multiplicam, assim como a ocupação de prédios públicos, fábricas e jornais. Em 7 de abril, no sudeste do país, é proclamada a República dos Conselhos da Baviera, cujo centro foi a cidade de Munique. O principal nome deste movimento foi Kurt Eisner. O governo era, majoritariamente, organizado pelos trabalhadores revolucionários, que estavam organizados em conselhos. Esses queriam tomar para si a tarefa de destruir o antigo Império Alemão, pois já não confiavam mais no governo social-democrata que, além de ter se tornado agente da contrarrevolução, aliou-se às antigas forças da monarquia[7].

A repressão, todavia, não tardou a chegar. Com o apoio de Gustav Noske, à frente dos Freikorps, o ataque começou já em 23 de abril. Sete dias depois a cidade de Munique foi cercada. Centenas de revolucionários foram executados sumariamente. O massacre da Baviera marca o fim da revolução alemã. A classe trabalhadora foi desarmada política e militarmente. Com o apoio das forças conservadoras, a nova ordem estabelecida se legitima com a eleição da Assembleia Nacional Constituinte em janeiro de 1919, majoritariamente dominada pelo SPD. Em agosto é promulgada a constituição, dando início a chamada República de Weimar[8]. Sob o governo do social-democrata Friedrich Ebert, iniciou-se uma política imposta a ferro e fogo.

Aqueles que lideraram o massacre de milhares de trabalhadores alemães não foram os fascistas (inexistentes na época) ou as forças reacionárias da monarquia, mas os próprios “socialistas” da social-democracia. O papel central do SPD na contrarrevolução, por sua vez, fez com que a nova república alemã se erguesse sob bases muito frágeis. A repressão violenta a todos os movimentos subsequentes, como uma greve geral no Ruhr em 1920, esmagada pelo exército, fez com que a classe operária cada vez mais deixasse de apoiar a social-democracia. Para completar, as duras medidas implementadas pelo Tratado de Versalhes, impostas com a derrota da Alemanha na Primeira Guerra, levaram à ruína da economia do país. Isso provocou um imenso rancor contra os países vitoriosos, exacerbando sentimentos nacionalistas. Quando chegou a grande depressão, em 1929, a catástrofe já estava anunciada. A derrota do movimento operário pela repressão liderada pelo SPD, o rancor nacionalista e a crise econômica transformaram a Alemanha em um barril de pólvora. Foi nesse terreno confuso que se assentaram as bases da onda conservadora que impulsionou o Partido Nazista nas eleições de 1930, quando se tornou a segunda maior bancada no parlamento. 

Apesar de ter ficado em segundo lugar nas eleições presidenciais de 1932, Adolf Hitler se tornou uma figura de peso. Com o apoio de grandes setores industriais, conseguiu convencer o parlamento a elegê-lo ao cargo de chanceler (chefe de governo, similar ao primeiro ministro). A partir daí, Hitler soube agir dentro da legalidade para ampliar sua influência e eliminar sua oposição. Perseguiu desde a social-democracia parlamentar até a militância comunista. Em 1934, após a morte do presidente Hindenburg, funde a presidência com a chancelaria tornando-se chefe de governo e de Estado. A fusão foi aprovada por 90% da população por meio de um plebiscito, em agosto do mesmo ano[9].

Naquele cenário caótico, Hitler representava a mudança e a restauração da ordem. Diante da impotência de suas próprias forças, dilaceradas pela social-democracia, a classe trabalhadora não foi capaz de resistir ao avanço fascista tal como resistiu à guerra em 1918. Por outro lado, a população alemã ansiava por uma salvação. Surge, então, um personagem que encarnou toda a insatisfação com o Tratado de Versalhes, responsabilizando os comunistas e o governo social-democrata pela humilhação da Alemanha ao se submeter a tal acordo[10]. A população alemã não apoiou Hitler e os nazistas simplesmente por serem fascistas. Estava farta da social-democracia e desesperada pela ruína econômica, acentuada pela crise de 1929. 

Existem muitas diferenças entre a Alemanha dos anos de 1930 e o Brasil nos dias de hoje. As semelhanças, da mesma forma, também são notáveis. Afirmamos na primeira parte desta série que Bolsonaro não é propriamente um fascista, muito embora existam muitas semelhanças, proximidades e alianças entre o populismo de direita e o fascismo. O que gostaríamos de destacar agora é que, tanto em um caso como no outro, estamos diante de uma classe trabalhadora que foi enfraquecida pela social-democracia. 

Com o objetivo de conquistar o governo, o PT conduziu sua militância para o cabresto da estratégia eleitoral. Utilizou os sindicatos para manter o movimento operário sob sua direção. Sufocou a autonomia do movimento tornando-o cada vez mais dócil e burocrático. Sob o governo do PT, os sindicatos se tornaram forças cada vez mais poderosas, verdadeiras máquinas a serviço do Estado. A fusão entre sindicatos e Estado é a grande marca do sindicalismo nos dias de hoje[11]. De “escolas do socialismo”, como dizia Lênin, os sindicatos transformaram-se definitivamente em “escolas da democracia burguesa”. Eis a função essencial da social-democracia, transformar a classe trabalhadora de lutadores em uma massa de eleitores dóceis. Uma classe trabalhadora fragilizada não é capaz de reagir a qualquer avanço conservador nos momentos de crise. Entregam-se abertamente ao conservadorismo diante do desespero e da impotência. Desde que não vislumbre qualquer outra saída para além do cenário eleitoral, a população tende a oscilar para os partidos de oposição nos momentos de crise do governo atual. Há dezesseis anos atrás, o PT representou um governo de renovação através de um candidato que era a cara do sofrido trabalhador brasileiro. A expectativa de renovação, porém, foi profundamente frustrada. Agora é o Bolsonaro que representa essa “renovação”, assim como Hitler representou na Alemanha de 1932. Infelizmente, com seu discurso intransigente, o capitão reformado representa a restauração da ordem perdida diante do caos econômico e político em que o Brasil se encontra. Diante disso, podemos dizer que o PT, ao adestrar a classe trabalhadora, preparou o terreno para o fortalecimento do conservadorismo.  

Tal como ocorreu na Alemanha de Hitler, o grande eleitorado de Jair Bolsonaro não o apoia simplesmente por concordar com todas as barbaridades que ele diz. Evidentemente, muitos pensam como ele, mas não parece tratar-se da grande maioria. Basta pensar que Lula estava liderando as pesquisas enquanto era um possível candidato. O fato de Bolsonaro ter conquistado 46% dos votos válidos no primeiro turno significa, necessariamente, que ele conquistou muitos votos que seriam de Lula. Sem seu líder carismático, o PT foi incapaz de se apresentar enquanto símbolo da mudança, pois está envolvido com os velhos escândalos de corrupção até o pescoço. Sem Lula para “acabar com a pobreza”, Bolsonaro desponta como aquele que vai “acabar com os bandidos”. Por que essa ideia conquista tantos apoiadores? De onde vem esse apoio? Quais contradições sociais fazem ecoar, de maneira tão ensurdecedora, as palavras do populista? Daremos um pouco mais de atenção a este problema na quinta parte dessa série de artigos.



[1]Library Genesis – Hobsbawn: A era dos impérios (clique aqui); Winkipédia – Neocolonialismo (clique aqui)
[2]Winkipédia – Revolução Alemã de 1918-1919 (clique aqui)
[3]Isabel Loureiro: Os conselhos na revolução alemã de 1918/19 (clique aqui).
[4]DW - República Alemã teve proclamação dupla em 1918 (clique aqui)
[5]Wikipédia – Freikorps (clique aqui).
[6]CCI – Há noventa anos, a revolução alemã (clique aqui).
[7]Isabel Loureiro: A revolução alemã [1918-1923] (clique aqui)
[8]DW – A República de Weimar (clique aqui)
[9]Wikipédia – Adolf Hitler (clique aqui)
[10]Adolf Hitler: Minha luta (clique aqui)
[11]Biblioteca Marxista na Internet – Anton Pannekoek: O sindicalismo (clique aqui)